Caetano de Almeida

Apresentação

Parla

para Caetano de Almeida


Um catalisador mental comum atravessa a maior parte dos trabalhos na presente exposição de Caetano de Almeida (Campinas, 1964): o impacto de uma recente viagem do artista a Roma e o fascínio específico pela Piazza dell’Orologio, onde se hospedou. Próximo à torre cujo relógio dá nome à praça, dormia sob os fantasmas de Francesco Borromini (1599-1667) e Pietro da Cortona (1596-1669), figuras incontornáveis na tradição arquitetônica e artística do barroco italiano. Convivia também com inúmeros outros fantasmas que construíram a grande Roma e contemplava as pedras, as dobras, os campos e as ruínas que pautaram certa história da civilização ocidental. Os títulos de boa parte das pinturas explicitam essa influência romana, como Loggia, Chimera, Pamphilj – uma referência à Galeria do Palazzo Doria Pamphilj, que abriga uma das mais impressionantes coleções italianas de arte –, 8 ½ – evocando a devassa e inquietante obra-prima cinematográfica de Federico Fellini (1920-1993) acerca da crise criativa – e Roma (todos de 2024). As relações com a cultura visual italiana, entretanto, não acontecem pela mimese, mas pela sugestão.

 

O artista revela um domínio profundo, não apenas da pintura e da geometria, mas também da história dessas disciplinas, subvertendo-as para expor a ineficiência desses sistemas na busca por uma organização uniforme do mundo. Ao ler, em sua produção recente, o abstracionismo geométrico como fetiche – como já o fez nas últimas décadas com naturezas-mortas, padrões têxteis florais e pirografias alegóricas –, Caetano reitera o colapso de um projeto de modernidade totalitário. Isso satiriza, portanto, a sua operação de elementos racionais, ortogonais e cartesianos, enquanto constroi vertiginosos labirintos mentais e visuais: “Assim, é realmente um processo incontrolável de associações, em que tudo é conectado com tudo. [...] [Seria] possível sistematizar a confusão para desacreditar o mundo da realidade”

 

Em Loggia (2024), utilizando caixas de feira de madeira e tinta rosa neon, Caetano apresenta uma sátira renascentista: a loggia, tradicional espaço arquitetônico coberto e vazado, que serve como transição entre interior e exterior, com seus marcantes eixos verticais das colunatas, aparece reinterpretada como uma palafita improvisada. Golpes desalinhados talham a madeira bruta, contrastando com o artificialíssimo rosa neon que colore seus versos. A agilidade e a rusticidade das caixas de feira enfrentam o capricho arquitetônico das arcadas renascentistas, enquanto o chamativo rosa neon ilumina seus corredores sóbrios e modulares. Por estarem no verso das faces frontais, esses corpos cromáticos não são diretamente visíveis, mas atuam como objetos reflexivos, aproximando-se de uma fonte de luz ativa. É esse “quase” que fascina Caetano: o quase modular, o quase volumétrico, o quase ordenado, a quase atividade de um objeto passivo. O apreço pela ambiguidade, aqui sintetizada pelos comportamentos luminosos a partir do reflexo do plano pintado, encontra similar atravessamento histórico nas Atmosferas cromoplásticas do argentino Luis Tomasello (1915-2014), expoente da arte cinética latino-americana. 

 

Caetano também se interessa pela esguelha: pelo que não é entregue frontalmente, mas é decifrado pela combinação de experiência crítica, erudição e humor. A armadilha perfeita, portanto, se faz por estar defronte a um perigo latente e ainda não o ver. É por essa via da obliquidade que o artista apresenta Chimera (2024): na pintura mais comedida, dócil e ordenada, estaria escondida a mais atroz fera – talvez a geometria euclidiana, as ilusões ópticas ou a perspectiva. De modo análogo, o acúmulo do tempo e o testemunho do processo se encontram em Anônimo (1998-2025), pintura que se aproxima do expressionismo abstrato gestual, mas se satiriza ao glorificar, sendo esticado num chassi, um pedaço de tecido no qual o artista limpou seus pinceis nos últimos quase trinta anos.

 

Continuando a explorar a ironia dos títulos, o pintor batiza Algicida (2023), remetendo-se ao produto químico que impede a proliferação de algas em piscinas para apresentar uma imagem cristalina, como se a ver o fundo ladrilhado distorcido pela refração da água. Essa candidez, entretanto, é infectada por uma discreta zona de amarelo na área esquerda da pintura, como se a reafirmar a impureza inerente a todas as coisas e a rejeição ao absoluto. Na obra, o espaço modular se apresenta deformado e relativo, com linhas sinuosas que remetem a uma membrana de água em leve movimento. O artista novamente inverte as noções de figura e fundo a partir de dois gradientes cromáticos que se invertem: o grande plano de fundo se transforma de um verde azulado claro na parte superior para tons mais escuros conforme desce, enquanto, em contraste, as linhas mais vívidas se desvanecem gradualmente. A vibração ótica e a interpolação de planos são acentuadas pelas listras feitas pelo artista com máscaras de fita adesiva, que, ao serem removidas no final do processo de pintura, revelam frestas da tela crua.

 

Em 8 ½, Roma e Pamphilj (todas de 2024), Caetano enfatiza a possibilidade da coexistência ambígua da aleatoriedade e do rigor na geometria, além da intenção tridimensional de uma malha reticular atravessada por sugestões de corpos cheios e vazios que se articulam em jogos entre os planos. Dessa forma, a cor desempenha um papel central na definição dos campos dinâmicos de profundidade da pintura e na estruturação de sua composição. Em Roma, especificamente, há uma proliferação de sólidos que remetem à cantaria típica de edifícios da tradição italiana, mas que aqui sugerem uma composição labiríntica e aparentemente aleatória. Esses elementos seguem uma progressão em espiral cuidadosamente planejada pelo artista, partindo do centro da pintura e se expandindo em sentido anti-horário.

 

Paralelamente, 8 ½ guarda forte similaridade visual com o famoso mapa de Roma elaborado por Giambattista Nolli (1701-1756) em 1748. Nesse mapa, Nolli utilizava áreas cheias e vazias para distinguir os espaços privados e públicos da cidade, estabelecendo o método cartográfico conhecido como 'mapa de Nolli', que evidencia os complexos fluxos espaciais das malhas urbanas. Ressurgem, nessas pinturas, informações autobiográficas do artista: memórias lúdicas de sua infância, construindo volumes com blocos de encaixe coloridos e livros da biblioteca de seus pais, além das centenas de mapas e desenhos técnicos de arquitetura feitos quando aluno da Escola de Desenho Campinas na década de 1980. 

 

Nas obras de Caetano de Almeida, a solidez cede espaço à transitividade, desafiando a fixidez da forma e do tempo. Não são declarações encerradas, mas postulações que reverberam através da história da arte, evocando memórias, citações e diálogos que desconstroem hierarquias e expandem possibilidades irradiadoras. Incitam a habitar um espaço de entremeio, onde a matéria pictórica encontra a narrativa histórica, e a geometria, que então buscava ordenar o mundo, agora se dissolve em labirintos de percepções e ambiguidades. É nesse trânsito — simultaneamente irônico e rigoroso — que Caetano reafirma a potência do incompleto, do deslocamento e da deriva.

 

Mateus Nunes

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