El Silencio: Galeria Luisa Strina
Por que batizar de “silêncio” uma exposição que tem tanto a dizer? Composta de oito pinturas e um conjunto de objetos, a quarta mostra individual de Magdalena Jitrik na Galeria Luisa Strina é como um enigma a ser decifrado. Talvez a mais misteriosa das pinturas, que à primeira visada aparenta ser a representação de um par de olhos sobre um maciço vermelho concreto, evoca os olhares que nos lançam a figura feminina sentada, no canto direito inferior, da obra Les Demoiselles d’Avignon, assim como a mulher agonizante, braços estendidos em postura de rendição, do lado direito na tela Guernica. A referência a Picasso não é direta nem fundamental, mas é sabido que a artista argentina se vale das vanguardas históricas, de cubismo e surrealismo a De Stijl e Bauhaus, em sua reinterpretação crítica dos modernismos.
A semelhança com Picasso se deve menos à obra do espanhol do que à apropriação que Picasso fez do primitivismo, afinal, o partido estético de abandonar a perspectiva em favor da bidimensionalidade deliberadamente adotado em Les Demoiselles para “épater la bourgeoisie”, afeita à pintura tradicional europeia, é revista à contrapelo por Jitrik no uso deliberado que a artista faz da perspectiva. Em suas pinturas, Magdalena costuma inserir contradições visuais entre fundo e figura. O efeito esfumaçado em várias das telas apresentadas em El Silencio produz não apenas uma sensação de volume flutuante, como também projeta a figura para trás e para a frente num dinamismo infinito.
Importante lembrar que, em 1907, Matisse classificou As Moças de Avignon como uma piada de mau gosto, e hoje o quadro é considerado a gênese da revolução cubista. Se, por um lado, Les Demoiselles fundou o cubismo, Guernica é o maior ícone do movimento. Como se sabe, o título da pintura monumental de Picasso deriva do nome da aldeia espanhola que foi a primeira área urbana a sofrer o bombardeio aéreo, em 26 de abril de 1937, pela aviação militar alemã, que apoiou a ditadura franquista na Guerra Civil Espanhola, preâmbulo da Segunda Guerra Mundial. Hoje em dia, e ao longo dos anos desde então, o trabalho é considerado um símbolo da paz e libelo contra as atrocidades da guerra, de qualquer guerra. Conta-se que, quando um oficial nazista viu a pintura, ele teria questionado Picasso: “Você fez esse horror, senhor?”, a que o artista respondeu “Não, você fez”.
A exposição de Jitrik pode ser pensada como um manifesto contra o arquipélago de arrogância que condena ao silêncio. As obras mais geométricas da mostra têm um quê mondrianesco, também revisitado à contrapelo, logicamente. É sintomático que os trabalhos reunidos na galeria escancarem a atualidade, um século e duas grandes guerras depois, do Manifesto I (1918), do grupo De Stijl:
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Existe uma velha e uma nova compreensão do tempo. A velha está relacionada com o individual. A nova está relacionada com o universal. A disputa entre individual e universal se mostra tanto na Guerra Mundial quanto na arte contemporânea.
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A guerra está desestruturando o velho mundo e o seu conteúdo: predominância do indivíduo em todos os campos.
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A nova arte trouxe à luz o que a nova compreensão do tempo contém: um equilíbrio entre o universal e o individual.
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A nova compreensão do tempo está preparada para se realizar tanto na vida interna quanto na externa.
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Tradições, dogmas e o predomínio do individual (do natural) estão impedindo essa realização.
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Por isso, os fundadores das novas artes plásticas pedem a todos que acreditam na reforma da arte e da cultura para aniquilar esses obstáculos do desenvolvimento, assim como eles aniquilaram nas novas artes plásticas (abolindo as formas naturais) aquilo que impede a pura expressão artística, a consequência final de todas as formas de arte.
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Os artistas do presente, impulsionados por uma mesma consciência em todo o mundo, tomaram parte na guerra mundial contra o domínio do individualismo e da arbitrariedade, de um ponto de vista intelectual. Eles simpatizam, então, com todos que lutam, intelectual ou materialmente, a favor da formação de uma união na vida, na arte, na cultura.
A guerra contra o individualismo, na trajetória de Jitrik, talvez seja mais evidente em sua militância à frente do Taller Popular de Serigrafía, com Mariela Scafati e Diego Posadas, nos anos 2000. Foi com o coletivo, por exemplo, que a argentina participou da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, com curadoria de Lisette Lagnado – exposição que disseminou, no Brasil, o conceito de estética relacional, do francês Nicolas Bourriaud, e é hoje considerada um divisor de águas na história da Bienal, primeiro por ter abolido as representações nacionais, mas, principalmente, por ter colocado na pauta do sistema de artes as pesquisas de artistas que se focam na colaboração e na coabitação, ou seja, nos valores do “viver junto”, que inclusive, emprestada de uma obra de Roland Barthes, foi a expressão que deu nome à Bienal de 2006, Como Viver Junto. A união pela qual lutavam os artistas um século atrás reviveu na América Latina e ao redor do mundo nos anos 2000 e, no início da década seguinte, de novo, na Primavera Árabe (2011) e nas Jornadas de Junho, no Brasil (2013).
Pari passu com o diálogo que Magdalena Jitrik estabelece com a tradição europeia, a ancestralidade das culturas antigas da América Latina invariavelmente entra no debate: a pintura Chac Mool, por exemplo, é inspirada na estatuária mesoamericana e sintetiza vários dos interesses e procedimentos da artista. Reinventar o processo construtivo de elementos arquitetônicos por meio da memória apenas é um dos dispositivos que guiam a construção de suas pinturas e esculturas; nesta obra, a artista preferiu recorrer às deformações da memória de experiências vividas, em lugar de fotografias. Ela viveu no México desde a infância até os anos de formação em Artes Visuais, porém, foi em uma viagem recente ao DF que a artista vivenciou o impacto das ruínas de uma civilização grandiosa que aos poucos foi sendo resgatada dos escombros da Tenochtitlan arrasada pelos conquistadores espanhóis.
O Chac Mool é onipresente na iconografia das culturas asteca e maia. Feitas de diferentes tipos de pedra, as estátuas retratam um homem reclinado segurando uma bandeja ou tigela em sua barriga ou peito, e guardam relação com Tlaloc, deus mesoamericano da chuva e do trovão. Na pintura de Jitrik, o deus do trovão se torna um edifício peculiar, antropomórfico. A ancestralidade em comunhão com o aqui e agora também marca Maíz / Humanismo (2008), conjunto de bandeiras estilizadas, feitas com palha de milho tramada. O milho (maíz, em espanhol) é uma planta sagrada na América Latina. Nesta obra, Jitrik se empenha em tramar a palha com o objetivo de se aproximar de uma forma geométrica; assim como nas pinturas sobre juta, o labor de tecer implica em um enfrentamento da “abstração pura”, que na arte da AL é historicamente atravessada pelo contexto social, pela herança das civilizações maia, asteca, inca e tupi-guarani, além de antropofagizada em parangolés e bichos, arte relacional, para usar um termo extemporâneo às experiências neoconcretas.
Em Maíz / Humanismo, Magdalena Jitrik também mobiliza, assim como fazia com seus colegas de Taller Popular de Serigrafía, dispositivos de protesto para a criação de obras de arte. Importante enfatizar que a juta sobre a qual foram pintadas as abstrações geométricas presentes na exposição foi tecida pela própria artista. Jitrik identifica esta matéria-prima com a tradição artesanal latinoamericana – basta pensar na apropriação da juta pela sua dimensão social por artistas do modernismo, como David Alfaro Siqueiros e Antonio Berni, e no uso que fizeram dela, posteriormente, nomes como Joaquim Torres-Garcia e Mira Schendel -, e pretende dela extrair uma aproximação dificultosa da geometria, dadas as imperfeições inerentes do material.
Voltemos à pintura que parecia retratar um par de olhos e vejamos ali dois pássaros que tocam a ponta dos bicos, duas pessoas que dialogam, ou ainda o símbolo do infinito. “Foi um quadro cuja visualidade e materialidade emergiu, um pouco arbitrariamente, no processo de produção das obras para a individual na Luisa Strina. Não tenho muito a dizer sobre esta obra, a não ser que vejo nela algo sobre a comunicação, a comunicação como símbolo de algo contínuo, de algo infinito”, reflete Magdalena Jitrik. A exposição da artista nos mostra, ao final, que mesmo quando não podemos falar, o silêncio promove a reflexão que enseja a conversa infinita com o outro.