Aglomerado Mergulho: Marepe
Um conjunto de 20 obras em diferentes linguagens marca a quinta exposição individual de Marepe na Galeria Luisa Strina e faz uma elegia à MPB e à possibilidade de festejar num futuro próximo uma realidade transformada
Apesar de ter sido realizada alguns anos atrás, a pintura A Festa (2017), de Marepe, ganhou novos significados após a experiência global com a pandemia de Covid-19: segundo o artista, uma festa que acontece dentro de um apartamento, a que comparecem apenas duas pessoas, que são um casal e, portanto, festejam em família no ambiente confinado de casa, é um retrato do que viria a se tornar a normalidade de uma festa possível. Só pessoas de um mesmo círculo de convivência diária num ambiente isolado e doméstico. “Minha relação com a minha casa se transformou muito durante todos os meses de confinamento. Assim como deve ter ocorrido com muita gente, eu precisei me voltar a afazeres com os quais não tinha preocupação antes, já que não tínhamos mais ajuda em casa. E esse voltar-se para a casa, debruçar-se sobre as minúcias da domesticidade, os mínimos detalhes e cantos do nosso próprio habitat, despertou novos olhares sobre esse entorno. Descobri tanta coisa sobre a minha casa e hoje posso dizer que a conheço melhor do que nunca”, conta Marepe.
A Festa é a primeira obra que o visitante de Aglomerado Mergulho vê ao entrar no espaço algo labiríntico que o artista desenhou para a montagem de sua quinta individual na Galeria Luisa Strina. “Não gosto de fazer exposições muito abertas, sem painéis dividindo o espaço e criando espaços mais íntimos ou marcadamente diferentes, porque gosto da cadência de ir descobrindo as obras aos poucos, como se uma história estivesse sendo narrada.” A narrativa que Marepe construiu para esta mostra reúne linguagens diferentes, uma marca registrada da pesquisa do artista: pintura, escultura, desenho, instalação, fotografia, colagens e assemblages se organizam no espaço sem hierarquia entre os suportes, que é como ele pensa a sua obra, nenhuma linguagem tendo maior importância que outra.
Ao lado da pintura, por exemplo, estão dois colares com pequenas esculturas transformadas em pingentes, Fruta Gogóia (2021), uma homenagem a Gal Costa e Waly Salomão que faz referência à música do folclore baiano que Gal tocava na época da Tropicália (e que Waly incluiu no show da cantora sob sua direção, em 1971, Fa-Tal: Gal a Todo Vapor). E, diante dessas duas obras, uma escultura que trata do sentimento vivido durante a pandemia, da falta de contato com o espaço da cidade e com o território onde antes cada um podia circular livremente, desde a sua rua ou bairro até o resto do mundo. Intitulada Contatos Espaciais (2020), a obra representa casulos (ou conchas) com antenas, estas simbolizando o tipo de contato que marcou o cotidiano da maioria das pessoas em 2020, em que a canção Parabolicamará, de Gilberto Gil, foi levada – na vida “real” – às últimas consequências do ponto de vista do que, um dia, significou possuir uma antena parabólica: “Antes mundo era pequeno/ Porque terra era grande/ Hoje mundo é muito grande/ Porque terra é pequena/ Do tamanho da antena…”. Nosso planeta ficou minúsculo, do tamanho de uma concha, hiperconectado via Zoom e viewing rooms.
Seguindo a cadência da história de Aglomerado Mergulho, encontramos Longo Discurso (2007), uma instalação inédita que Marepe decidiu mostrar agora por causa da relação de sua individual de 2021 com a música popular brasileira: varas de pesca alinhadas e firmadas em pé por fios de nylon presos à parede trazem nas suas pontas os peixes tropicalistas-psicodélicos do artista, discos. Vinte vinis fundidos em alumínio e “pescados” do grande acervo musical brasileiro são o seu tributo à MPB. “Durante o ano passado, eu escutei muito a minha coleção antiga de vinil. Logo no começo da pandemia, arrumei uma vitrola e fui revisitar as minhas referências musicais. Percebi que a MPB é uma longa narrativa que, ao somarmos todos aqueles discos como se fosse possível sintetizar todo o conteúdo em uma imagem, conta a história do povo, as estórias e as reflexões que deram forma ao Brasil contemporâneo, e que também dão forma e cor e cheiro às nossas memórias”, afirma.
Diante da instalação, na sala maior da mostra, um banquete para os olhos: uma série de colagens em diálogo estreito com Fita Amarela (2020), que homenageia Noel Rosa; esculturas, outra série de colagens e objetos são entrevistos, conforme o visitante percorre esse espaço, através da instalação de grandes dimensões atravessada no centro da sala: Olhar Encarcerado (2008), também inédita, que provoca o entendimento sobre a visão. Trata-se de um par de óculos gigante em que a “lente” são cabos de aço que não permitem o acesso ao outro lado, somente esse olhar fragmentado que acusa a dificuldade de enxergar. A peça exige um deslocamento do corpo para ser apreendida e mimetiza simbolicamente o impedimento de se deslocar, a impossibilidade de olhar, a limitação de viajar para ver o mundo. Para Marepe, a obra ganhou novos sentidos com a pandemia, daí a decisão de incluí-la na exposição, como um contraponto à tela A Festa, que trata também das novas formas de olhar da atualidade.