Caetano de Almeida: Galeria Luisa Strina

Apresentação

Depois de Rembrandt, Soutine. Depois de Rembrandt e Soutine, Francis Bacon. Carcaça (2019), de Caetano de Almeida, presta tributo a esta curiosa tradição da natureza-morta, a do fascínio pela pele esfolada do animal depois do abate. Mais do que um comentário sobre vanitas ou a crueza da morte, os pintores que se dedicaram à representação detalhada do boi dissecado provavelmente contemplavam a própria existência em um momento de inflexão. A respeito de Rembrandt, pelo menos, isso é documentado: o artista retratou o boi durante um período difícil de sua vida. Envolvido em dívidas, no início da década de 1650, Rembrandt mergulhou mais fundo em problemas financeiros e, finalmente, em julho de 1656, requereu falência. Sua casa e posses foram vendidas, e ele se mudou para um bairro de classe trabalhadora, relata a historiadora da arte Lisa Deam, que se questiona, em seguida:

 

“Rembrandt se sentiu despojado e esfolado quando pintou o boi morto? Essa imagem representava uma maneira de ele expressar a crueza da falência ou da remoção de seu sustento? O artista pode ter vislumbrado sua própria mortalidade em seu boi abatido, mas ele também continuou a pintar versões mais promissoras de si mesmo. Em seu autorretrato de 1658 na coleção Frick, Rembrandt aparece como um cruzamento entre um artista da Renascença e um rei magistral. No contexto do tema do memento mori holandês, esta pintura sugere uma inversão do movimento aparentemente inevitável em direção à morte e à decadência: a renovação da carne é possível, afinal de contas, o retrato parece afirmar.” 

 

Caetano de Almeida não considera a sua tela Carcaça um autorretrato, mas, assim como Rembrandt hipoteticamente pôde se transmutar de boi esfolado em mestre ou rei poderoso da Renascença, uma mudança importante é evidente nesta obra de 2019. Uma transformação está em curso na produção de Caetano de Almeida há algum tempo, e já foi notada em ensaio do teórico Tadeu Chiarelli, publicado ano passado por ocasião de uma mostra individual do artista no Rio de Janeiro:

“Nessa nova safra de obras chamam a atenção uma determinada tela – Behavior – e alguns desenhos, aqueles da série Física. Em Behavior é notável como, ao lado do micro relevo vertical produzido por Caetano – e que cobre toda a superfície da tela, subvertendo-a –, o artista deixa se expandir, de leve, uma tinta em tom de vermelho. Lógico que Caetano até tenta controlar o discreto transbordamento de cor, mas, a tinta, insidiosa, acaba percorrendo seu curto trajeto até esvair-se, sem deixar-se brecar pela ação do artista. Como resultado, temos uma tela que é um relevo que sangra. O que significa que, de repente, a pura virtualidade das pinturas de Caetano fica comprometida por uma pintura que se nega como pintura (é um relevo), que parece jogar-se na realidade tridimensional, sangrando.”

 

Chiarelli prossegue discorrendo sobre a novidade das incisões nas aquarelas da série Física e dos furos reais que Caetano obtém pressionando um cigarro aceso sobre o papel, nos desenhos intitulados Maços. Para o crítico, essas perfurações conferem aos trabalhos “uma corporeidade mais de objeto do que propriamente de pinturas” e transformam “o espaço bidimensional em ‘coisa’ atravessada pelo real”. Os três conjuntos de obras recentes, portanto – Behavior, Física e Maços – indicam uma guinada na pesquisa do artista, devido à valorização da materialidade das coisas, evidente, na exposição de 2019 na Galeria Luisa Strina, na obra Lenticular (2019), que é um desdobramento de Behavior. Chiarelli finaliza seu ensaio apontando que a materialidade “está ali como que registrando o início de uma transformação no trabalho do artista, [que] poderá ganhar novos e inesperados rumos.”

 

Novos rumos marcam a décima-primeira exposição individual de Caetano de Almeida na Luisa Strina. O mais evidente deles é o abandono da racionalidade matemática que define as suas pinturas dos anos 2000 em diante. Outro aspecto da ruptura é a violência de que estão agora carregadas as obras que aludem à “palhinha brasileira”. Nas duas obras que retratam a trama de palha, a violência está nos rasgos (O Museu Invisível, 2019) – os pedaços simbolicamente arrancados da trama – ou no estiramento da pele do boi (Carcaça, 2019). É como se o artista trafegasse da cultura tropical do mobiliário “refrescante” para a cultura glacial das roupas e tapetes usados para aquecer ambientes e corpos em regiões geladas. O que essas pinturas têm de frieza, uma nova série de obras – e pensamento – compensa pela saturação. Pac Man, Construção e Caverna (todas de 2019) parecem falar de um mundo virtualizado e criptografado, como se retratassem algum fluxo de informação decodificado em cores e formas. A intenção de Caetano, entretanto, é a mesma daquela que guiou a construção de Carcaça: dialogar com a história da arte.

 

Caverna se inspira na construção de espaços escuros cercados de luminosidade por Courbet. “Tenho fascínio pela forma como ele criava um buraco escuro o mais claro possível no meio da tela”, comenta Caetano. Após o Jantar no Ornans (1849), O Ateliê do Pintor (1855) e Depois da Caça (1859) são algumas das obras que vêm à mente. Já Construção tem uma biografia associada ao mesmo tempo à tecnologia e à arqueologia, pois nasceu da observação de fragmentos de um afresco romano descoberto em um castelo na França, que, ainda nas primeiras fases de restauro – após ter sido identificado, sob muitas camadas de história e revestimentos – podia ser observado apenas através de pequenos recortes quadrados e retangulares na superfície da parede de pedra. “Os furos permitiam entrever aqui uma voluta, ali uma planta, anjinhos nos cantos, tudo submerso num tom verde acqua. A imagem do mural com recortes ficou na minha cabeça por muito tempo”, conta.

 

Unindo tudo, finalmente, estão os furos, rasgos, vazios, que fazem lembrar dos cortes reais feitos anteriormente pelo artista. Reais ou virtuais (representados), os buracos falam de sofrimento e decadência, o que na exposição culmina na tela Cruzeiro do Sul (2019), constelação da qual, na trama (no duplo sentido de enredo e de urdidura) de Caetano de Almeida, as estrelas foram arrancadas. A principal referência da história da arte neste conjunto recente de trabalhos, confessa o artista, é mesmo a do Salto no Vazio, de Yves Klein. Acontece que, assim como em Rembrandt, onde se vê decadência também se pode enxergar renovação. “Essa viagem é o que quero propiciar: a beleza está na viagem, não no destino”, completa Caetano.

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