MARCIUS GALAN: Mecânica dos meios contínuos
Desenhos para organizar o pessimismo
Numa sala escura, observamos dois pontos de luz se deslocando no espaço. A cena lembra o voo dos vaga-lumes, os pequenos insetos que praticamente desapareceram das grandes cidades, pois seu brilho tênue e intermitente requer uma profunda escuridão. Para realizar Cinema (2025), Marcius Galan transformou a galeria Luisa Strina num breu. Na obra, a unidade mínima do desenho – o ponto – existe como unidade mínima do cinema – a luz. O vagar dos lampejos, apesar de aleatório, projeta um fluxo contínuo, ao mesmo tempo que fornece parâmetros sobre a escala e o formato do ambiente.
O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman conta que o brilho de cinco mil vaga-lumes equivale à quantidade de luz de uma única vela (1). Sua luminescência é uma forma de comunicação amorosa, um chamado para a cópula. Eles reluzem para atrair parceiros. De certo modo, o escuro produz uma sensação de aconchego, acolhe e desarma. Cinema existe como voo no vazio da galeria. A obra também é uma homenagem a Pier Paolo Pasolini, que criou uma imagem poderosa sobre os pirilampos, em 1941, em meio à Segunda Guerra, quando estudava literatura em Bolonha. Em carta endereçada a um amigo, o poeta compara a existência alegre e errática dos insetos à arte e à poesia, vendo-as como uma alternativa vital aos tempos sombrios e grotescamente iluminados pela propaganda fascista. A metáfora é a mola propulsora do livro Sobrevivência dos vaga-lumes, no qual Didi-Huberman discute a relação dialética entre consciência histórica e pessimismo, ética e fragilidade em tempos de fascismo velado ou explícito. No texto concluído em 2008, mas de evidente atualidade, o autor argumenta que é necessário não se contentar em descrever a barbárie.
Em Mecânica dos meios contínuos, Galan desenha no espaço, sobre a natureza e com ela. O título da exposição se refere ao ramo da física que estuda o movimento e a deformação dos corpos; um campo do conhecimento que lida com o tempo e com forças invisíveis, como o magnetismo e a gravidade. A geometria fornece o vocabulário de formas e gestos a partir do qual o artista age sobre materiais de origem natural ou industrial. Os trabalhos falam sobre a maneira frequentemente trôpega da espécie humana habitar a passagem do tempo. Eles resultam de forças de ritmo e intensidade variadas agindo sobre corpos que resistem de acordo com sua própria constituição. A ideia de resistência não diz respeito apenas às barreiras físicas. Ela se refere à resiliência, à teimosia e ao ânimo que impulsionam os gestos cirúrgicos de Galan.
Infinito (1999), um tubo de vidro moldado na forma de oito, é obstruído por um nódulo de cera. O otimismo próprio das ciências, dos tubos de ensaio e das análises clínicas é bloqueado e deformado. O símbolo da fluidez do tempo é transformado em veia entupida, dando a entender que há algo errado com o curso da história. O coágulo de Infinito contrasta com a persistência instável retratada em Anti-horário (2025). O filme mostra um filamento vegetal que se comporta como um compasso, movido pela força do vento. Apesar da fragilidade, o pequeno galho cava duas circunferências perfeitas numa superfície rugosa de areia. Ele lembra o ponteiro de um relógio ou a agulha de um toca-discos que ora avança, ora recua. Quando o ponteiro se move em sentido anti-horário, ouvimos um som distorcido. A imagem do arco traçado com compasso é recorrente em outros trabalhos do artista, estando quase sempre aliado à ideia de violência e infração, fruto de um gesto feito com um instrumento duro, que risca superfícies perfeitamente polidas, artificiais, próprias de contextos urbanos. Em Anti-horário, o compasso está por um fio, seu movimento é trêmulo e titubeante, descontínuo e ruidoso.
Em contraste com a ausência de luz no primeiro ambiente, a segunda sala da exposição apresenta um conjunto de trabalhos de grandes dimensões, mostrados às claras, feitos de matéria dura e pesada. Duas pedras que, juntas, somam cerca de uma tonelada, foram deslocadas da Bahia e de Minas Gerais para constituir Memória geológica (2025). Os pedaços de montanha, símbolos de permanência, são envolvidos por duas linhas de aço, que apontam uma para a outra, em forma de seta, sem se tocar. Os fios desenham uma força de atração que age de maneira lenta e silenciosa, a ponto de criar vincos nas pedras. Na peça Força resultante (2025), outro risco feito no espaço sugere uma força magnética descomunal atuando contra a gravidade. Uma linha de ferro, ao ser atraída por um prego na parede, segura uma haste de madeira em posição de queda. Linha e prego também não se tocam. O vazio entre eles cria um equilíbrio tenso. A todo momento, existe a possibilidade de a atração falhar e tudo desabar.
Na mesma sala iluminada, dois painéis de grandes dimensões sugerem paisagens cósmicas e ao mesmo tempo mundanas. Orbital (2025) exibe quatro pedras, desta vez, refugos de mineração, dispostas sobre uma superfície preta e reluzente, pintada com tinta automotiva. O trabalho dialoga com Anti-horário e com outras obras do artista. As pedras funcionam como uma força de atração em torno da qual orbitam objetos cortantes que riscam o plano com agressividade, traçando semicírculos com a precisão de um compasso. Baixa resolução (2025) é de certa maneira um pleonasmo e um contrassenso. A obra faz alusão à vista aérea de uma queimada constituída por milhares de pequenos cubos de carvão e madeira, ao mesmo tempo que remete às imagens pixeladas que se espalham como fogo pela internet. Porém, a materialidade porosa dos pixels de carbono é o contrário da unidade mínima de luz que forma uma imagem digital. O trabalho é um desdobramento de pesquisas que vêm sendo realizadas por Galan há alguns anos, em que ele justapõe pequenos cubos de carvão e borracha, criando uma tensão entre a existência virtual de um desenho e seu possível apagamento. Distante da luminosidade da tecnologia digital, a expansão da área preta de Baixa resolução é cuidadosamente planejada. Somente a combustão seria capaz de lhe conferir algum brilho.
Num momento em que novos tiranos pretendem a todo custo intimidar qualquer tipo de dissidência, Marcius Galan nos oferece uma coleção de trabalhos que versam sobre diferentes formas de resistir. Entre a aceitação e a rejeição das leis da física, Mecânica dos meios contínuos é uma contestação solitária, uma forma de organizar o pessimismo, como um dia reivindicou Walter Benjamin (2). Imaginar forças sobrenaturais movidas pelo desejo de projetar novas configurações de mundo é uma forma sutil de fazer política e rejeitar a barbárie.
Heloisa Espada
1) Georges Didi-Huberman. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011, p. 52.
2) Benjamin citado por Didi-Huberman, op. cit., p. 118.