Travessia: Alexandre da Cunha
Luisa Strina tem o prazer de apresentar Travessia, exposição individual de Alexandre da Cunha na galeria. Ao reunir quatro novas esculturas e duas peças de parede, Travessia é o resultado de um novo momento na prática do artista, tensionando as capacidades de objetos funcionais entre as esferas pública e privada e marcando um atravessamento da dualidade cultural no trabalho do artista. O texto da mostra é assinado por Luisa Duarte.
Alexandre da Cunha utiliza elementos cotidianos em suas esculturas, que normalmente não estão associados aos códigos de arte. Por meio de manipulações, cortes e junções de objetos distintos, suas obras criam novos símbolos e significados. A trajetória e a prática do artista, que vive e trabalha entre o Reino Unido e o Brasil, estão intrinsecamente relacionadas a uma dualidade de referências adotada em seu trabalho — em que a utilização dos objetos retirados do cotidiano reflete seu caráter e uso cultural. Entre a capital britânica e São Paulo, o ato de atravessar ganha um duplo sentido: o caminho entre dois continentes – dois contextos culturais, sociais e geográficos diferentes – e, com isso, o cruzamento de uma nova fronteira em sua prática. Travessia tornou-se, assim, um movimento contínuo de transformação pessoal e profissional para o artista.
Ocupando a sala 1 da galeria, a mostra apresenta obras da série Mina (2024), com quatro fontes de água verticais criadas a partir da estrutura de orelhões empilhadas, esculturas que assemelham a totens e que contemplam mais de dois metros e meio de altura. Com marcas comerciais retiradas de suas superfícies, tais estruturas conformam uma longa composição coloridas. Sua base também é feita de concreto comumente usado na construção civil ou em projetos de paisagismo. Tudo é banhado pela água, que reflete o próprio objeto e reproduz a sonoridade do líquido quando entra em contato com a superfície da escultura.
“Gosto de pensar nos orelhões como conchas acústicas, onde várias pessoas e histórias passaram — desde ligações para familiares no interior, às declarações de amor e às discussões. Ao contrário de uma cabine telefônica, onde você entra para conversar, o orelhão representa um espaço semi privado, onde a sua fala e seu corpo são parcialmente protegidos, porém permanecem expostos e vulneráveis", conta Da Cunha.
Transformados, ainda que não reconheçamos os emblemáticos telefones públicos brasileiros na composição, o olhar preciso consegue observar a permanência dos grafismos, rachaduras e, especialmente, das marcas do tempo e do uso. Assim, os trabalhos de Alexandre da Cunha, que invariavelmente costumam apontar setas para diversos efeitos e reflexões, constituem – nas palavras do próprio artista – uma “arqueologia para o futuro”, feitos de vestígios de uma vida cotidiana que assumem outros formatos e funções.
Mina, que, de certo modo, retoma uma discussão formal entre base e escultura recorrente nas colunas de Constantin Brancusi (1876–1957), traz, ainda, um debate sobre as relações entre público e privado, uma vez que as fontes de água, evocativas do espaço público de uma praça, são trazidas para dentro do espaço da galeria. Este é um trabalho que desenvolve a pesquisa do artista com elemento cinético — neste objeto, possivelmente tido como ‘morto’ e obsoleto, a água se torna fonte de vida, em uma celebração alegórica das travessias do mundo.
O título da mostra, Travessia, faz referência à obra homônima, uma escultura elaborada a partir de um autorretrato fotográfico do artista. Em torno da imagem de seu busto, há um colar feito de cabo de aço e diversas bóias de pesca, dispostas em ordem crescente de tamanho. Dois ilhoses perfuram a fotografia, atravessando o colar por trás da peça. A imagem de um contexto informal de Da Cunha contrasta com o simbolismo ritualístico do colar e do próprio busto na história da arte, enquanto as boias também dialogam com a temática da água. O artista reflete sobre um paralelo que tenta celebrar todas as vulnerabilidades, entre o novo e o velho, a vida e a morte.
“O ato de expor a minha imagem carrega um elemento de fragilidade em si, que também conversa com a vulnerabilidade do próprio objeto — muitas vezes quebrado, rachado ou esquecido”, acrescenta. Apesar de existir uma certa camuflagem dos objetos utilizados e das reflexões profundas — formais e conceituais — estimuladas pelos trabalhos, nada é capaz de ocultar o seu senso de humor espirituoso.