O canto dos sapos: Pablo Accinelli
Conversa entre Pablo Accinelli e o curador Bernardo José de Souza
Bernardo José de Souza: O título O canto dos sapos evoca tanto uma imagem quanto uma atmosfera: a um só tempo um lugar e uma paisagem sonora. Por outro lado, remete a um universo de seres vivos, embora a exposição se construa a partir de objetos inanimados, cotidianos, o que acaba por produzir uma espécie de colapso do(s) sentido(s).
Pablo Accinelli: O canto dos sapos poderia formar uma trilogia com as minhas duas últimas exposições: Entes y serpientes e El canto de los pájaros. No caso desta mostra, com o título português, existe essa particularidade espacial que você menciona. O canto por meio do qual os sapos se anunciam e o canto que poderiam habitar. Como a sala é a última – só se chega lá atravessando toda a galeria – ela tem esse ar de esconderijo. Os trabalhos parecem estar tanto dentro quanto fora da programação da galeria. Por sua vez, a palavra “sapo” nos leva a muitas imagens, histórias com veneno e outros sentidos que transbordam qualquer tentativa de redução. O sapo como um animal no qual nós, desafortunadamente, nos transformamos, ou, por exemplo, como na Argentina, onde se diz “fazer sapinhos” quando você lança uma pedra na água e ela pula várias vezes, como se fosse, justamente, um sapo saltando. Uma pedra inerte convertida em um animal rápido, ágil. Esse transbordar gerado pela própria palavra tem a ver com um desejo de não tematizar a exposição ou aquilo que eu faço. Quando não falamos de algo em particular, estamos falando de tudo, e é nesse sentido que o meu trabalho se expande ou invade melhor seu contexto. O da elasticidade.
B: Sempre que vejo seu trabalho, sinto como se uma chave houvesse sido literalmente virada em minha cabeça — uma espécie de traição semântica produzida pelos objetos à minha volta. O mundo material ganha uma dimensão fantasma e, a partir de então, passa a operar dentro de uma lógica sui generis, como se dotado de sensibilidade e agência próprias.
P: Eu gosto da palavra “traição” como sabotagem ou vandalismo, algo próprio da poesia que cresce sem avisar. Acho que a traição está relacionada ao fato de as pessoas irem a uma exposição para ver obras de arte, mas, às vezes, os meus trabalhos atuam mais como se fossem os próprios observadores. Ou, pelo menos, lançam a pergunta: somos nós que observamos os trabalhos ou são os trabalhos que nos observam, nos medem, nos estudam, como o que acontece com o oceano em Solaris de Stanislaw Lem? A Valentina Liernur escreveu sobre isso em relação a algumas de minhas exposições: “[os trabalhos] nivelam a nossa existência com o resto dos objetos na sala. E nos transformam em algo a ser observado”. Acredito que é daí que surge essa dimensão fantasma que é o espaço que o trabalho nos oferece. O ar que separa os trabalhos se transforma em uma armadilha que nos faz ficar expostos. Um bom exemplo disso é o trabalho com os cabos de vassoura apoiados nas paredes brancas, que copiam o espaço gerado pelo ar.
B: Percebo suas peças como uma espécie de teletransporte: em sua inelutável imanência produzem uma experiência transcendental — daqui para outro espaço/tempo, outro mundo. Ou seria para a nossa mesma realidade, transfigurada?
P: Eu acho que o meu trabalho tem a ver com espera e com o estado no qual o esperar e o observar nos colocam. Esperar um amigo, esperar alguém descer do ônibus para você se sentar, ou quando limpamos a nossa casa. O que vemos nesses momentos é cheio de detalhes que de tão próximos e repetitivos se tornam mais reais. Parte dos pensamentos mais longínquos fica suspensa em favor dos pensamentos mais imediatos, que assumem o centro da energia. Os trabalhos têm objetos que estão vinculados diretamente a esse estado: um assento de metrô embutido na parede, tudo aquilo que podemos fazer com um clipe para passar o tempo ou bandejas que, literalmente, esperam por serem usadas. Nesse sentido, os detalhes exacerbados das peças (o corte nos pratos, o negativo do clipe, o perfil dos jornais) friccionam a realidade para que ela aumente. Alguém uma vez me disse que os trabalhos têm um quê de telescópio invertido, eles são maiores do que aquilo que vemos, incorporam uma paisagem maior. Eu acho que tem um pouco disso também.
B: Lembro de uma amiga que me dizia ficar espantada não com a tecnologia de um computador, mas com coisas absolutamente banais, prosaicas, como o funcionamento de uma fechadura — para ela um mistério insondável! (risos); e também de um outro amigo que se perguntava sobre a possibilidade de, a partir de um caco arqueológico, construir não um vaso, mas uma anomalia, pervertendo a ideia de uso/função atribuída às coisas em seu suposto passado. Conto essas histórias porque me parecem lidar com questões em mim despertadas por sua obra.
P: Eu também sou fascinado pelo simples ou pelo simplificado, pelos atalhos que nós humanos pegamos para sair de um apuro, tais como abrir uma porta com um cartão de crédito ou usar uma porta para fazer uma mesa. Há um desenvolvimento material que tem a ver com aquilo que necessitamos toda hora para estar, construir, habitar. Há alguns anos, eu pensava que os meus trabalhos tinham que ser habitados mentalmente, que tinham que provocar essa projeção. As camas de cimento com as almofadas infláveis surgem disso, e também os papéis fotográficos brancos rodeados por cadeados. Não acho que o meu trabalho tem a ver com perverter a ideia de uso, mas talvez com dar continuidade às possibilidades dos objetos de uma maneira espacial. Um cabo de vassoura pode ser uma unidade de medida do nosso contexto ou de nós mesmos, com tudo que isso implica. Pendurar uns espanadores pode dar a eles uma identidade que fica escondida no uso, mas sem os perverter, o que eu consideraria um pouco violento, mas sim lhes outorgando um lugar diferente daquele que eles têm a priori. Nesse sentido, eu nunca mudo o espaço onde exibo, não ponho paredes, não mudo a iluminação. Usar a paisagem como ela é afirma mais essa elasticidade dos objetos. Os trabalhos parecem menos manipulados, como se estivessem sendo observados pela primeira vez.
B: Algumas de suas obras são, em certo sentido, o avesso do ready-made, pois foram recriadas à imagem de um objeto já existente. Me parece que você está explorando a redundância das formas existentes, reconhecíveis. E isso me faz pensar em seu desejo de não criar novos objetos, mas repropor nossa relação com o mundo material que já está dado.
P: A incorporação de réplicas de objetos acrescenta uma camada adicional às peças que antes já levantavam a questão sobre se eu as tinha feito ou comprado assim. Em ambos os casos, elas parecem pertencer ao momento anterior ao seu projeto industrial. As réplicas voltam à maquete dos objetos, retornam os objetos à categoria de pré-produtos, como gosta de dizer uma amiga. Neste ponto, cabe uma pergunta que eu venho me fazendo há algum tempo: tenho que produzir mais ou tenho que produzir menos? Essa é uma pergunta que eu sinto que o mundo onde vivemos nos faz muito. Ao mesmo tempo, antes eu trabalhava muito com coincidências, algo que fazia com que a narrativa fosse resolvida em algum momento. Ao eliminar as coincidências, multiplicaram-se os espaços recriados pelos objetos e aumentou o entorno. Que espaço é recriado por uma cadeira de metrô, por uma série de sacos de carvão com chaves e com umas estruturas brancas que chegam até a nossa cintura? Volto a pensar que quanto mais rápido um trabalho nos leva ao mundo exterior, melhor.
B: Sua obra se dá no interstício entre narrativa e abstração. Parece haver, pelo menos, esses dois caminhos que se bifurcam e se encontram em algum ponto: eles acionam repertórios narrativos e, ao mesmo tempo, esgotam a possibilidade narrativa, levando-a aos limites da linguagem.
P: Há situações, objetos ou frases do mundo que se localizam mais num estado de pergunta do que de resposta. Eu quero que os meus trabalhos juntos deem lugar a um estado de pergunta, talvez isso seja o abstrato. Aliás, isso, às vezes, gera um certo incômodo que é desativado quando alguém diz alguma coisa. Ninguém fala nada até que alguém diz alguma coisa. As exposições poderiam ser um jogo de palavras cruzadas completo, sendo a nossa tarefa escrever as frases usadas para achar essas palavras. Várias coisas aparecem sintetizadas como palavras soltas, quase emojis (clipes, chaves, o fogo nos sacos de carvão) ou, por exemplo, a lixeira que parece um desenho de si mesma, a sua versão mais resumida. Há um interesse pessoal que tem a ver com a pergunta, no sentido em que, nas exposições, o que está lá é tão importante quanto o que não vemos.
B: Você tem uma obsessão por chaves — chaves e cadeados —, objetos que parecem estar sempre a encerrar sentidos e desbloquear/revelar novos nexos semânticos, como nas fotografias brancas que você mencionou anteriormente.
P: Faz algum tempo que eu quero que o meu trabalho seja uma espécie de máquina na qual tudo pode entrar. Uma voz em off, subterrânea, que, como as palavras cruzadas ou o gênero epistolar, pode admitir todos os gêneros, que escapam a tematização. A incorporação de chaves e cadeados tem a ver com isso, mas também as superfícies que refletem o seu entorno (o inox das lixeiras ou bandejas ou também (por que não?) o metal dos cadeados e das chaves).
B: Embora, à primeira vista, o seu trabalho passe a impressão de que promove uma organização estrita dos elementos no espaço, ao fim e ao cabo, acredito que ele faça o revés: vai justamente desorganizar a percepção do mundo a partir da criação de diversos tropos visuais. Ao passo que sua obra pode ser lida como altamente racional, ela também vai transpirar uma forte carga afetiva e de memória. As peças são como extensões de nossos corpos, duplos de nós mesmos, da realidade imediata e daquela imaginada.
P: De vez em quando, os trabalhos são pensados apenas como exemplos. O título Duración interna tem a ver com isso: o que vemos é uma possibilidade gerada internamente entre muitas outras. O mesmo acontece com os títulos com medidas. Eles medem como podem medir outros objetos (um cadarço, uma sequência de sapatos). As coisas se imprimem sobre as coisas com obviedade, elas se replicam a elas mesmas. Nesse sentido, a distância que existe entre os trabalhos pode ter a ver com memória e afeto. Vemos objetos, mas não reconhecemos por completo a sua carga material, o seu passado, nem a sua hierarquia em relação aos outros. Essa distância desorganiza de alguma foram um sistema de valores e nos questiona sobre as capacidades vinculadas à visibilidade dos trabalhos e dos objetos em geral. Há algo de camuflagem, de estar ou não estar, que também é parecido com quando estamos esperando que algo aconteça.