Cildo Meireles | No Reino da Foda: 1964 - 1987: curadoria de Ricardo Sardenberg
"Meu desenho, como disse, é premonitório em relação a minha própria obra”
Cildo Meireles em entrevista com Frederico Morais
Como bem observado pelo crítico de arte Frederico Morais, no currículo de Cildo Meireles as exposições individuais de desenhos são raras: no Museu de Arte Moderna da Bahia em 1967, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1978, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, 1998 e a grande mostra curada pelo próprio crítico no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, em 2005. Lá se vão quase 20 anos. O curioso é que ao longo de toda sua carreira, com a exceção de um interregno de 5 anos, entre 1968 a 1973, Cildo sempre foi um desenhista quase compulsivo e, não raras vezes, selvagem. Explorando desde a linha até os campos cromáticos de alta intensidade, passando pelos desenhos mais conhecidos, que estruturam projetos para obras mais complexas e normalmente mostrados em grandes exposições de suas instalações. Para muitos observadores da carreira do artista, pode parecer quase como se houvesse dois Cildos, ou uma bifurcação na sua obra: aquele mais visto, com as grandes instalações e projeto ditos conceituais e bastante revisitado, e o outro, expressionista, um retratista, um cronista social do Brasil dos anos 1970 e 1980, ou como ele mesmo descreveu: “Houve um momento no qual meu desenho era sofrimento, como se fosse trabalho de um repórter político ou policial.... havia toda aquela adrenalina juvenil. Se não desenhasse, eu provavelmente teria mais espinhas. Era algo biológico. E também catarse”.
Embora seja correto afirmar que existe, na trajetória de Cildo, uma obra anti-imagética que surgiu contemporânea à explosão da arte conceitual no circuito internacional, sendo Inserções em circuitos ideológicos o exemplo mais óbvio, e que as Inserções são, não por acaso, contemporâneas aos 5 anos de interregno sem desenhar, algo pouco observado na obra do Cildo é a constante potência imagética de quase todas as suas instalações. Estas, com frequência, são quase que transmutações da imagem bidimensional para o campo tridimensional, o que não chega a ser uma surpresa, visto que Cildo faz parte de uma geração pós-neoconcreto, movimento que havia também alterado o estatuto da imagem nos anos 1960. Por exemplo, Desvio para o vermelho: Impregnação, 1967-1984, talvez seu trabalho mais icônico, é uma obra inaugural e, ao mesmo tempo, o exemplo mais contundente de uma imagem-síntese que une, por um lado, a vida mundana de conforto material da classe média branca urbana que ascendia no Brasil dos anos 1970, uma imagem realista e, por outro, o sonho, o lugar onírico da vigília com forte conotação erótica e de morte. Mas outras grandes instalações podem também ser vistas por essa chave da criação de imagens universais, com forte apelo subjetivo do artista. Instalações como Babel, Volátil, Marulho são todas elas imagens realistas compostas de materiais simples e mundanos, que tem no cuidado na iluminação altamente controlada de suas salas um instrumento para se chegar não só à experiência, mas também à uma visualidade.
Cildo Meireles: No reino da foda (1964 – 1987) abre com um desenho de 1964, quando o artista tinha apenas 16 anos, mas que já contém, quase de forma premonitória, o germe de toda a urgência que aparecerá em seus desenhos futuros. Já marcado pelos eventos políticos daquele ano que culminaram no golpe militar, esse desenho em nanquim, merthiolate e clara de ovo com pigmento sobre papel, já apresenta um artista sofisticado no trato com os materiais e capaz de apresentar uma imagem-síntese de uma situação - no caso, o medo. Nele, Cildo apresenta duas cabeças sombrias com largas testas que se assemelham a capacetes de soldados.
Já no ano seguinte, Cildo cria os noves desenhos, dos quais dois estão na exposição, aos quais deu o título de No reino da foda. Fortemente inspirado pelo escritor Henry Miller, Cildo “chegou a ocupar os vazios no início e no final dos capítulos de Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, com desenhos”, como relatou Frederico Morais, e reproduzo aqui trechos que Frederico tirou de Trópico de Câncer e que remetem à várias referências utilizadas pelo artista:
“Ela descia furtivamente no escuro, tão logo sentia pelo cheiro que eu estava lá, sozinha, e grudava sua boceta toda sobre mim. Quando me lembro, era também uma boceta enorme. Um labirinto escuro e subterrâneo dotado de divãs e cantos confortáveis, dentes de borrachas e seringas, ninhos macios, acolchoados e folhas de amora. Eu entrava com verme solitário e me enterrava em uma pequena fenda onde o silêncio era absoluto e tudo tão macio e repousante que eu ficava como um golfinho em um banco de ostras [...] Às vezes era como andar numa montanha russa, um brusco mergulho e depois um jorro de vibrantes caranguejos do mar, os juncos balançando-se febrilmente e as guelras de minúsculos peixes encostando-se a mim como teclas de harmônica. Na imensa gruta negra um órgão suave toca uma música negra e rapinante. Quando ela atingia a nota mais alta, quando soltava todo o sulco, fazia um roxo violáceo, uma profunda mancha de amora como um crepúsculo, um crepúsculo ventrilocal... [...] E agora estou na mesma cama e a luz que existe em mim recusa se apagada [...] eu estou sozinho na Terra da Foda... no reino da super-boceta.”
Esses dois polos, o político-social e o erótico, parecem já estar bem firmes como temas que dominarão boa parte de sua produção futura, ora tendendo para um lado ora para o outro, mas em muitos desenhos eles partilham o mesmo espaço. Ao longo dos anos, Cildo criou toda uma espécie de personagens, mas também às vezes se afastou para representações que contestassem os espaços euclidianos, nos famosos Cantos, e também representações tênues da natureza como matas, floras e faunas. De certa forma, o artista inventariou e deu visibilidade para uma sensação de Brasil por meio de representações do medo, da violência, do sexo, da fantasia, das transformações urbanas e sociais. E, como ele mesmo disse nas aspas que dão título a esse texto, talvez devêssemos começar a olhar o “premonitório”, ao invés do “projeto”, em seus desenhos.
Uma característica muito reconhecida de Cildo Meireles é sua capacidade de contar histórias, reminiscências, lembranças que o marcaram e que comumente parecem explicar as origens dos trabalhos. De um jeito gentil, Cildo gasta boa parte do seu tempo com conversas que nos levam para outros lugares ou dimensões, outras possibilidades de significado e leitura do seu trabalho. Às penso que são parábolas, e mesmo que nem todas as histórias sejam verdadeiras, acho que pouco importa. Talvez até melhor. Por isso, sempre penso em uma que me parece descrever bem a encruzilhada em que se encontrava o artista jovem quando sua obra começou a ganhar corpo.
Em 1968 ou 1969, o colecionador e marchand romeno radicado no Rio de Janeiro Jean Boghici comprou o Canto. Acho que era a primeira obra que Cildo vendeu na vida. Com apenas 18 anos, muito tímido, Cildo foi entregar a obra na casa do colecionador, que na época já era uma lenda no Rio. O artista tocou a campainha e Jean abriu a porta falando num daqueles telefones antigos com fio muito longo que permitia caminhar pelo apartamento enquanto conversava. Jean fez sinal para o artista entrar e apontou uma sala onde Cildo poderia aguardar por uns minutos. Cildo, naturalmente nervoso, sentou no sofá, quando percebeu do outro lado da sala, sob uma mesa, um Bicho da Lygia Clark. Ele conhecia muito bem o trabalho, mas nunca tinha visto um ao vivo e muito menos tocado nele. Emocionado com o encontro inesperado com obra de uma artista que ele admirava, foi caminhando em direção à obra com a intenção de tocar e mover as peças, mudando sua configuração. No exato momento em que alcançou a obra e ia tocá-la, Jean apareceu na porta ainda no telefone e fez um gesto abanando as mãos como que muito nervoso por ver o jovem artista quase que pegando a obra. Cildo se assustou, e foi aí que Jean Boghici apontou para o chão. O seu desespero era porque o artista, para alcançar o Bicho da Lygia Clark, acabou caminhando, pisando em cima de um Portinari que estava estendido no chão.
Se esta história é real, não sei, mas para mim sempre foi uma descrição exata do encontro fortuito de três gerações de artistas que descreve as contradições em que se encontrava o artista mais jovem. Até hoje, dificilmente consigo olhar para uma peça do Cildo e não pensar que ele, desde o início, emaranhava os fios do já então moribundo modernismo brasileiro e do movimento neoconcreto para assim fazer o seu próprio desenho.
[Ricardo Sardenberg]