A lua busca la sombra: Juan Araujo + Mauro Restiffe
reprodução, reflexos, duplos
Tiago Mesquita
A exposição A Lua busca la sombra, feita em parceria pelos artistas Juan Araujo e Mauro Restiffe, é um jogo de duplos. Ao aproximar fotografias e pinturas, mostradas de maneiras específicas, os artistas fazem com que um objeto ressoe no outro, e no outro, e no outro, como em uma casa de espelhos em que um reflexo deforma o seguinte até que não sobre mais nenhuma lembrança de onde veio aquela imagem final. A lógica especular da reprodução, onipresente na produção de Araujo e muito importante para Restiffe, ganha diferentes sentidos na medida em que os trabalhos são comparados entre si.
A mostranasce de um pedido feito por um amigo. Araujo pinta a partir de imagens previamente coletadas alhures. Interessado em arquitetura, já pintou fotografias que registravam obras de Carlos Raúl Villanueva, Oscar Niemeyer, Pancho Guedes, Vilanova Artigas, Marcos Acayaba, Álvaro Siza, Gerrit Rietveld, etc. Em 2019, Juan quis figurar o colorido da Casa James Francis King, de Paulo Mendes da Rocha, em São Paulo. Não encontrou, todavia, imagens satisfatórias para o seu propósito. Perguntou se Mauro Restiffe fotografaria a casa para ele, Restiffe topou.
Deu certo, muito certo. Embora Juan tenha se valido das fotografias para construir as suas vistas, aos poucos o diálogo evoluiu para outras aproximações entre as duas obras. Eles viram, assim, que era possível trabalhar a partir de uma lógica de espelhamento que ia além da comparação entre imagem pintada e imagem fotografada. Aliás, os trabalhos na exposição não se aproximam por semelhança.
As imagens não coincidem necessariamente. Ainda que isso possa acontecer, elas ressoam, com efeito, de outras maneiras. Por vezes, aproximam-se pela tentativa de reproduzir algo descrito pela foto, mas a aproximação também pode se dar pela maneira de olhar para a paisagem, de ver a ruína dos monumentos, de tentar descrever representações da morte. Quando eles mostram, lado a lado, a fotografia que Mauro Restiffe fez do “quadrado preto” de Maliévitch e a reprodução que Juan Araujo fez de Ligereza y Atrevimiento de Juanito Apiñani en la de Madrid, a vigésima gravura da Tauromaquia, de Francisco Goya, é esse aspecto que salta aos olhos.
Mauro Restiffe parte de uma pintura em que Maliévitch pretendia desfazer o espaço tradicional da arte. Supostamente, nele morreria uma forma de representação consolidada para dar lugar a um mundo novo. Maliévitch fazia isso pelo alto contraste entre forma e fundo. Mas não é assim que as coisas acontecem na fotografia de Mauro Restiffe. Pelo contrário, nela todo o plano é granulado e poroso. Algumas partes da imagem são mais densas, outras mais esparsas. O quadrado imponente não atua mais como o túmulo da tradição e o estandarte de uma nova era. Ele assume uma superfície porosa, como se estivesse a perder sua solidez, a desfalecer, como as promessas de outro mundo do século XX.
A pintura de Juan Araujo também funciona por contraste, ressalta certo desgaste da passagem do tempo. Ele reproduz a fotografia de uma gravura de Goya, na qual um toureiro se apoia em uma lança pouco antes de cair sobre os chifres do touro.
Goya reproduz o instante anterior à sua morte. A fatalidade é anunciada pela sombra que se projeta no chão da gravura. Juan Araujo dá ênfase sutil à sombra, como se ressaltasse a obviedade da tragédia, sua inevitabilidade. O amarelado da pintura trata a gravura não só como uma criação artística, mas também como um artefato visual. Para Juan, duplicar a imagem é reafirmar a iminência da tragédia. Mesmo porque, na pintura, a sombra é ainda mais nítida. Assim, quando vemos a foto de Mauro Restiffe ao lado dessa pintura, a dimensão trágica se amplia. O efeito é de um artista sublinhando o que o outro disse, sem precisar recorrer à reprodução.
Esse jogo reflexivo, no entanto, assume outros caminhos. Na obra de Mauro Restiffe, a reverberação aparece no retrato da marchand Luisa Strina, em Casa de James King #4 e na imagem Matheus e Rembrandt (2015), na qual o filho do fotógrafo volta os olhos para a câmera fazendo eco ao autorretrato do pintor holandês. Aliás, os ecos são recorrentes nos trabalhos de Restiffe quando ele trabalha a partir de obras da tradição. Há dupla de anjos, dupla de retratos, dupla de paisagens.
A lógica é outra em fotografias feitas a partir dos vidros de monumentos arquitetônicos. Na imagem feita na Casa de Vidro, de Philip Johnson, o reflexo desfaz a transparência estrutural do vidro. Aqui, ele aparece, ao mesmo tempo, transparente e reflexivo. As separações entre interior e exterior são relativizadas e, na imagem, os fragmentos refletidos do jardim são ecos da pintura de Poussin que vemos ao longe. Assim, o reflexo é também reverberação do ambiente árcade registrado pelo pintor francês.
Quando Juan Araujo refaz a fotografia que Mauro Restiffe tirou do interior do Palácio do Alvorada, em Brasília, esta corrosão de limites é ressaltada. A imagem trabalhada por Juan não é mais a mesma, é uma versão eletrônica de baixa resolução e impressa. Na pintura, ela aparece como parte de uma coleção de referências visuais saídas de sites de procura. Vemos, sob o palácio, legendas do Google sobre uma pintura de Rembrandt e uma indicação da Wikipédia.
Juan Araujo parte de uma impressão dessas pesquisas, como indicam as imitações que faz de marcas de desgaste da superfície, de vincos de amassados e ranhuras. A imagem original é bastante diferente da pintada. É tonal, sem granulado, azulada e esmaecida. Suas bordas são corroídas, aquela descrição que havia na foto, vai se apagando, devagar e sempre. As marcas do desgaste aparecem no modo como Juan Araujo modela a superfície, como embranquece as laterais, sobretudo, como refaz os reflexos. A variação do colorido na pintura é menor do que na foto. Os reflexos da fotografia aparecem aqui como manchas apagando o contorno das figuras. O que estava ali não está mais aqui. A reprodução perde, pouco a pouco, o objeto, até que a memória vaga do que havia ali se torne outra coisa.