Imóvel/instável: Galeria Luisa Strina

Apresentação

Exposição Marcius Galan Abertura dia 28/06/2011 às 19h. Exposição de 29/06 à 30/07/2011.

 

IMÓVEL/INSTÁVEL Por Luisa Duarte Em “Imóvel/Instável”, de Marcius Galan, na Galeria Luisa Strina, temos a presença de uma obra cuja potência formal vem aliada à um conteúdo não menos espesso que nos fala de forma aguda sobre o tempo em que vivemos. Essa conjugação é rara e faz da obra de Galan um dos acontecimentos mais instigantes da produção contemporânea. Nos últimos dez anos o artista vem exibindo conjuntos de trabalhos que somente reforçam tal convicção.

A mostra tem início com uma grande instalação que dá título à exposição. Uma estrutura que se assemelha a um móbile, mas que, entretanto, não se move. As estruturas penduradas estão ancoradas no chão, deixando a composição que evoca movimento, imóvel.

O desenho é feito de tal modo que essa fixidez carrega consigo algo de torto, está fixo, mas não há harmonia, mas sim desequilíbrio. Algo que guarda, em potência, o desejo de movimento. Olhamos para peça e ela, sim, tem a natureza de um móbile, mas não sai do lugar, está rija, presa, estável.

Os pesos que seguram a estrutura são feitos em formas de pirâmide e diminuem de módulo em módulo. Há uma seqüência que vai decrescendo de fora para dentro. Os primeiros “pesos” chegam a ter 120cm x 120 cm de base, até chegar ao último, no qual a sustentação é dada por uma simples moeda. Note-se que uma moeda tem o mesmo papel, cumpre a mesma função, de um grande bloco de concreto. Ao final, o dinheiro está no centro e, mesmo com sua carga “real” ínfima, equivale aqui à primeira, simbolicamente e praticamente. Veremos que toda a mostra é atravessada por questões como equilíbrio e (des)organização. Em “Prumo”, o mesmo equilíbrio instável do trabalho anterior se faz presente. Se formos ao dicionário veremos que a palavra quer dizer desde o nome dado para um instrumento de engenharia usado para verificar a verticalidade de um lugar ou o eixo de um sólido, bem como possui significados mais subjetivos, como prudência, tino, juízo, cautela, esteio. O que se vê é um trabalho que tem na moldura o seu suporte. Um prego grande atravessa o vidro, o papel, a estrutura de madeira e encontra a parede. Mas não rasga nenhum deles, percorre todo esse caminho com justeza, com prumo. O papel, que tinha a medida exata da moldura se desequilibra pela gravidade, pois o prego não é centralizado, e o excedente de papel que sai do limite da moldura é eliminado, criando-se assim uma abstração que é produto do acaso. Notemos como todos os materiais empregados são simples, madeira, concreto, moldura, vidro, prego, papel, todo um vocabulário básico dos tradicionais “trabalhos de arte”. A obra de Galan como um todo prima por essa economia formal. Aqui, menos é mais. Fazendo esse uso enxuto no registro formal, o artista nos leva a pensar sobre um campo alargado de assuntos. Tanto “Imóvel/Instável”, quanto “Prumo”, trazem uma contradição em si. A imobilidade do primeiro está associada à uma visão de instabilidade. Quer se mover, andar, sair da posição entrópica, mas algo o freia, interrompe o fluxo. A aparência, então, é ambígua. Algo pronto para entrar em movimento, mas que, como se estivesse em um pântano, não consegue sair do lugar, ficando embaraçosamente pelo meio do caminho, imóvel, mas instável. “Prumo” pede um segundo olhar, do contrário perde-se o cerne da obra. Tudo ali está quase no seu devido lugar, no eixo. Tudo é simples, as cores, os materiais usados. Não há nada representado. O que usualmente se usa como suporte para um futuro trabalho é o próprio trabalho, e o que faz dele isso é uma leve inflexão, uma torção mínima, que nos mostra como o que parece estar, numa primeira e preguiçosa visada, no prumo, na realidade encontra-se fora dele. Seria um devaneio clamoroso associar tais trabalhos como uma situação da sociedade brasileira? Arrisco-me a dizer que não. Sim, é possível realizar tal associação. Essa foi a correspondência que me veio à cabeça quando vi, pela primeira vez, os estudos para essas obras. Vivemos um estado de indeterminação por natureza no Brasil. Nos últimos anos o país passou por mudanças positivas inquestionáveis, necessárias, mas ainda insuficientes. Precisamos de mais, para mais gente, e de camadas mais profundas na melhoria de vida das pessoas. Mas, tentando tatear a coisa de forma menos objetiva, existe sim entre nós uma sensação permanente de entropia, um estado crônico de uma promessa que não se cumpre completamente, um girar em círculo, um equilíbrio que sempre pode estar prestes a se desfazer. Convivemos desde sempre com esse sentimento de tudo ser provisório. Não à toa a figura da gambiarra foi usada inúmeras vezes como metáfora exemplar de um modo de ser tipicamente brasileiro. As obras de Galan surgem impecáveis, o avesso da gambiarra, mas, em uma segunda visada, descobrimos que se trata de um truque ou que aquilo que parecia aprumado está, na verdade, torto, fora de esquadro, com algo instável. Passamos, então, a olhar mais atentamente o que está à nossa frente. Seus trabalhos nos rememoram essa experiência por vezes inefável, mas contundente, que perpassa a realidade do Brasil, sua cultura e as escolhas de vida da nossa sociedade. A imobilidade não é fruto de estabilidade, segurança, porém ao contrário, é signo de uma condição pantanosa, instável, indeterminada. Se um estado de coisas característico do Brasil pode ser pensado na experiência evocada por esses trabalhos, o percurso continua viável em “Bandeira preta”. Aqui não só o país, mas um certo cenário de mundo pode ser refletido a partir da obra. O que se vê é uma chapa espessa de aço, pintada de preto, que repousa no chão sobre uma haste de madeira. O ferro tem o seu desenho modificado pela forma da madeira, como um lençol que revela o volume do que está por baixo, contrariando as especificidades dos materiais. Sua forma de bandeira e haste apresenta uma estrutura com aparente leveza, a espera de um voluntário que se proponha a erguê-la, mas sua construção impossibilita completamente tal gesto. “Bandeira preta” contém aspectos que são característicos da obra de Galan como um todo e nos permite fazer um elo com questões mais abrangentes. Há aqui algo que se revela como um truque para o olhar. Não por acaso uma das obras da mostra chama-se “Uri Gueller”. Trata-se de uma escultura na qual um equilíbrio meticuloso e ilusório sublinha uma desconfiança para o olhar reforçada pelo título, que faz menção ao ilusionista/pop/charlatão que nos anos 1970 amolecia utensílios domésticos de metal na frente dos espectadores no horário nobre da TV. Um trabalho memorável como “Seção diagonal” (2008), na qual elementos básicos como parede, teto, piso, tinta, luz e cera fazem uma mágica na qual parece haver uma parede entre nós e o outro lado, quando na verdade há somente ar, é exemplar desse tipo de procedimento que se repete na trajetória do artista. Em “Bandeira preta” também somos assombrados por aquilo que num primeiro instante parece, mas não é. Entre a surpresa e a descoberta se dá a experiência que de fato interessa. Galan modifica a nossa percepção da chapa de aço, nos dando uma primeira impressão de que se trata de um tecido, toda a conformação remete a algo que pode, sim, ser pego. Mas não, não podemos. Por um lado o registro ilusionista que instaura uma nova forma de percepção está presente, por outro, devemos atentar para as especificidades desse “método” no trabalho em questão. A função de toda bandeira é ser erguida. Esta se encontra no chão e é negra. As bandeiras evocam lutas, nações, partidos, religiões, modos de ver o mundo. A bandeira negra de Galan me parece fruto não de um niilismo puro e simples, tampouco de cinismo; formas recorrentes de se responder ao atual estado de coisas no mundo. Não, o negro e a impossibilidade de ser erguida aqui nos falam mais sobre um não para as divisões, as fronteiras, as lutas e pontos de vistas que prescrevem modos dogmáticos de se viver, do que para um niilismo/cinismo de fundo individualista. É inegável o tom melancólico, de desengano, típico de uma época pós-utópica como a nossa. Há essa presença de um símbolo de crença e luta rebaixado, deitado. Mas, de alguma forma, a vontade latente que essa “Bandeira preta” nos provoca dá a pensar que sim, devemos sempre estar com esse desejo por alguma mudança pulsando. Não aquela de natureza heróica, utópica, dogmática. Mas uma de outro tipo, menos fácil de ser nomeada, mais fragmentada, mais cotidiana.

Esse modo de ser fragmentado, não linear, que caracteriza o tempo atual, um tempo desenganado, pode ser pensado na série de fotografias “Ilhas derivadas”. Vemos pedaços de tintas amarelas e brancas sobre um asfalto. O desgaste do tempo desfez a linearidade, a totalidade, para dar lugar a fragmentos, a dispersão. A utopia, termo forjado por Thomas Morus no século XVI, evoca uma ilha imaginária onde impera a harmonia e a justiça. As ilhas de hoje são o avesso disso, não temos mais o ideal de coesão e harmonia, mas sim somos chamados a uma nova sabedoria, aquela de saber nos mover pela forma de deriva, em meio aos cacos, aos pedaços, construindo algo a partir de fragmentos.

Na sua função original, essas porções de cor fazem parte de grandes linhas que servem para dar a direção correta nas ruas de uma cidade ou de uma estrada. Se a modernidade tinha a linearidade e o progresso como premissas, devia o homem, Ocidental que só, seguir sempre em linha reta, rumo ao futuro, que seria, obviamente, melhor do que o presente. Nessa corrida desenfreada perdia-se, ou perde-se, de vista o que temos a nossa volta no momento presente, aquele mais prosaico, como o das cores desgastadas pelo tempo no asfalto da cidade. Fazer dessa camada mais ordinária um solo fértil para a poesia é algo possível hoje. Um lado crepuscular se apresenta, mas uma aurora também. Quem sabe estamos mais aptos a percorrer com mais liberdade, olhando para os lados, perdendo tempo no aqui e agora, em busca de sentido para o por vir. Tendo como norte não as linhas coesas e precisas, mas sim essas que nos levam não em direção à uma terra prometida, mas às ilhas derivadas, soltas, ainda por fazer, abertas para um outro lugar, ainda inaudito, como as Galan.

“Imóvel/Instável” é uma exposição que nos deixa com a lembrança da precisão, da forma coesa e aguda, mas tudo isso está construído em par com a dúvida, o fora de prumo, o desequilíbrio em meio a uma suposta estabilidade. Há beleza, há surpresa, há chance de descobertas para o olhar em cada um dos trabalhos expostos. Essa simultaneidade na divergência, essa contradição de fundo que permeia toda a obra, é o que nos oferta a chance de pensarmos em aberturas possíveis, em indagações antes impensáveis. A obra de Marcius Galan surge transpirando urgências e possibilidades do presente fazendo uso de uma extrema economia formal. Todo esse rigor, quando chegamos perto, nos aproxima daquilo que balança, se move, flutua, mas não desaba. Como um caminhar sobre a água. Diante desses trabalhos lembramos da arte diária de nos equilibrarmos numa espécie de ausência, sobre um solo escorregadio. Equilíbrio instável, mas que sim, nos move.

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