Bruno Baptistelli
b. 1985, São Paulo, Brazil
Lives and works in São Paulo, Brazil
Memento, 2020 - 2022
grillz de ouro 18K, cúpula de vidro e madeira ebanizada
[18K gold grillz, glass cupola and ebanized wood]
[18K gold grillz, glass cupola and ebanized wood]
grillz 2 x 4 x 0,5 cm | cúpula 35.5 x 22 x 22 cm
3/4 x 1 5/8 x 2 in | 14 x 8 5/8 x 8 5/8 in
3/4 x 1 5/8 x 2 in | 14 x 8 5/8 x 8 5/8 in
Edition of 10 plus 2 artist's proofs
Copyright The Artist
Memento
A exposição individual do artista paulistano Bruno Baptistelli (1985) na plataforma cultural 55SP intitulada “Memento” (objeto que evoca algo ou alguém; recordação) se revela ao público em uma única obra. Apresentada em uma sala que subverte a ideia de cubo branco expositivo, asséptico, tradicional, neutro, optou-se por um dispositivo próximo à caixa preta teatral, escura, orientada a um objeto/cena, onde dentro de um expositor transparente com luz direcionada, o objeto se destaca no centro da sala. Feito a partir de um molde da dentição do artista, o objeto em ouro é elemento principal da proposição, e dialoga sobre bucalidade, estética e permanência.
Entende-se por bucalidade a expressão dos trabalhos sociais que a boca humana realiza, abordando sua subjetividade, extrapolando seu conceito anatômico. Ter dentes brancos e alinhados socialmente denotam saúde, sendo utilizado como parametro no período da escravidão para valorização ou depreciação humana. Os negros escravizados embarcados na provincia litoranea de Benguela na Angola, tinham como tradição cultural serrar os dentes insisivos, surgindo dai o termo abrasileirado “banguela” para se reportar a pessoas com ausencia de algum dente. Tendo um padrão, o que foge a regra é questionado, sendo assim a proposição do artista para dentes dourados confronta os ideais de bom-gosto.
A formação do imaginário do dente de ouro na cultura brasileira é incerta. Na atualidade fazem parte da complexa identidade cultural cigana, comunidades dispersas por todo o Mundo e que chegaram ao Brasil em situação de degredo, vindo junto com os portugueses ainda no século XVI. Muitos se instalaram em Minas Gerais e frequentemente eram associados a estereótipos de perturbadores da ordem. Durante o Ciclo do Ouro já no século XVIII, em que a extração e exportação de ouro e a escravidão eram as maiores fontes econômicas, existia o ofício de barbeiro (cirurgião pouco treinado que realizava procedimentos, incluindo extrações dentárias), porém nenhum relato da prática de adorno ou uso ortodontico do ouro.
Não muito distante surgiam os primeiros “dentistas” legalizados do Brasil na cidade de Salvador, de classe sociais baixas, contando inclusive com negros escravizados. Existe uma iconografia de Jean-Baptiste Debret publicada em 1835 intitulada “Boutiques de Barbieri” na qual são representados trabalhadores negros e em uma placa consta “barbeiro, cabellereiro, sangrador, dentista e deitão bichas”. Hoje a profissão de odontólogo é majoritariamente ocupada por pessoas de classes sociais mais abastadas e consequentemente brancas.
Um dos primeiros escritores a utilizar a referência dente de ouro na criação de seus personagens foi o poeta modernista Menotti Del Picchia (1892-1988), participante do grupo dos cinco ao lado de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, foi um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Ele publicou “ Dente de Ouro - Romance de Costumes Nacionais” inicialmente intitulado “A Suprema Façanha” (1921), história que fala do triângulo amoroso de um “fora-da-lei” , Maria Luíza e um delegado, sendo o anti-herói o personagem a ornar o tal dente dourado. Outro exemplo de uso da imagem do dente de ouro na literatura aparece na peça teatral “Boca de Ouro” (1959) de Nelson Rodrigues (1912-1980), na qual a homônima Maria Luísa, conta três versões de um crime cometido pelo bicheiro que havia substituído todos seus dentes em perfeito estado por dentes de ouro. Tanto Menotti quanto Nelson afirmavam que os personagens foram inspirados em pessoas reais.
Frequentes na cultura norte-americana dos anos 70 e 80, os “grillz”, jóias dentais removíveis, ou não, compostas por metais nobres, diamantes e pedras preciosas ficaram populares em meados dos anos 2000, através da cultura Hip-Hop. A partir daí a imagem ora associada à marginalização dá lugar novamente a um status de riqueza, podendo as jóias chegarem a valer mais de 1 milhão de dólares.
Evidências arqueológicas a partir de arcadas dentárias datando c.4000 a.C. encontradas nas Filipinas mostram o quanto é antiga a utilização do ouro como ornamento dental. Tais modificações tinham motivações complexas e lidavam com questões de identidade cultural, embelezamento, porém ainda não tinham aspirações protéticas funcionais. Tais achados atravessaram todo esse tempo e hoje servem como base para compreender melhor as culturas antigas.
A arcada dentária é também uma identidade, onde cada pessoa possui uma conformação única, utilizada inclusive pela ciência forense para designação de indivíduos, sendo assim o objeto apresentado também é uma espécie de digital do artista. No momento que é da vontade do propositor a obra, após sua morte, ser enterrado portando os dentes de ouro, tal prótese adquire característica semelhante a uma máscara mortuária.
Sugere-se a entrada de uma pessoa por vez na sala expositiva.
Ademar Britto